quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Reflexões de Fidel

A Revolução Bolivariana e a paz

• EU conheço bem Chávez; ninguém como ele seria mais renuente a derramar sangue de venezuelanos e colombianos, dois povos tão irmãos como os cubanos que vivem no leste, no centro e no extremo oeste da nossa Ilha. Não tenho outra forma de exprimir o grau de irmandade que existe entre venezuelanos e colombianos.

A caluniosa imputação ianque de que Chávez planeja uma guerra contra a vizinha Colômbia levou um influente órgão de imprensa colombiano a publicar no domingo passado, 15 de novembro, sob o título "Tambores da guerra", um desdenhoso e injurioso editorial contra o presidente venezuelano, onde se afirma, entre outras questões, que "a Colômbia deve levar bem a sério a mais grave ameaça a sua segurança em mais de sete décadas, pois foi feita por um presidente que, além disso, é de formação militar..."

"A razão – continua – é que cada vez são maiores as possibilidades de uma provocação, que pode ir desde um incidente fronteiriço até um ataque contra instalações civis ou militares na Colômbia."

Mais adiante, o editorial acrescenta como algo provável "...que Hugo Chávez intensifique seus ataques contra os ‘esquálidos’ — alcunha com que chama os seus opositores – e tente tirar do poder municipal ou regional a quem o contradiz. Já o fez com o prefeito de Caracas... e agora quer fazê-lo com os governadores dos estados fronteiriços com a Colômbia, que se recusam a se submeterem a sua autoridade... Um confronto com forças colombianas ou a acusação de que elementos paramilitares planejam ações no território venezuelano pode ser o pretexto de que precisa o regime chavista para suspender as garantias constitucionais."

Tais palavras apenas servem para justificar os planos agressivos dos Estados Unidos e a grosseira traição da oligarquia e da contrarrevolução na Venezuela contra a sua Pátria.

Coincidindo com a publicação desse editorial, o líder bolivariano tinha escrito o seu artigo semanal em "As linhas de Chávez", no qual julga a impudica concessão de sete bases militares aos Estados Unidos em território da Colômbia, o qual tem 2.050 quilômetros de fronteira com a Venezuela.

Nesse artigo, o presidente da República Bolivariana explicou com coragem e lucidez sua posição.

"...eu disse-o nesta sexta-feira, no ato pela paz e contra as bases militares dos Estados Unidos em terra colombiana: tenho a obrigação de fazer um apelo a todos para nos prepararmos para defender a Pátria de Bolívar, a Pátria dos nossos filhos. Se não o fizesse, estaria cometendo um ato de alta traição... A nossa Pátria é hoje livre e vamos defendê-la com a vida. A Venezuela nunca mais será colônia de ninguém; nunca mais se ajoelhará diante do invasor ou de qualquer império... o gravíssimo e transcendental problema que tem lugar na Colômbia não pode passar despercebido pelos governos latino-americanos..."

Mais adiante acrescenta conceitos importantes: "...todo o arsenal bélico ianque, contemplado no acordo, responde ao conceito de operações extraterritoriais... torna o território colombiano um gigantesco enclave militar ianque..., a maior ameaça à paz e à segurança da região sul-americana e de toda Nossa América."

"O acordo... impede que a Colômbia possa dar garantias de segurança e de respeito a ninguém; nem sequer aos colombianos e às colombianas. Um país que deixou de ser soberano e que é instrumento do ‘novo colonialismo" vaticinado pelo nosso Libertador, não pode dá-las."

Chávez é um verdadeiro revolucionário, pensador profundo, sincero, corajoso e trabalhador incansável. Não galgou o poder mediante um golpe de Estado. Revoltou-se contra a repressão e o genocídio dos governos neoliberais que entregaram os enormes recursos naturais do seu país aos Estados Unidos. Sofreu prisão, alcançou maturidade e desenvolveu suas ideias. Não assumiu o poder por meio das armas, apesar de sua origem militar.

Possui o grande mérito de ter iniciado o difícil caminho de uma revolução social profunda, a partir da denominada democracia representativa e da mais absoluta liberdade de expressão, quando os mais poderosos recursos da mídia do país estavam e estão nas mãos da oligarquia e a serviço dos interesses do império.

Em apenas onze anos, a Venezuela conseguiu os maiores avanços educacionais e sociais alcançados por um país no mundo, apesar do golpe de Estado e dos planos de desestabilização e descrédito perpetrados pelos Estados Unidos.

O império não decretou bloqueio econômico à Venezuela —como o fez em Cuba — após o fracasso de seus golpes sofisticados contra o povo venezuelano, porque se teria bloqueado a si mesmo, devido a sua dependência energética do exterior, mas não renunciou ao seu objetivo de destruir o processo bolivariano e o seu generoso apoio com recursos petroleiros aos países do Caribe e da América Central, suas amplas relações de intercâmbio com a América do Sul, a China, a Rússia e numerosos Estados da Ásia, da África e da Europa. A Revolução Bolivariana goza de simpatias em amplos setores de todos os continentes. Dói especialmente ao império suas relações com Cuba, depois de um bloqueio criminoso ao nosso país, que já data de meio século. A Venezuela de Bolívar e a Cuba de Martí, através da ALBA, promovem novas formas de relações e intercâmbios sobre bases racionais e justas.

A Revolução Bolivariana tem sido especialmente generosa com os países do Caribe em momentos extremamente graves de crise energética.

Na nova etapa atual, a Revolução na Venezuela encara problemas completamente novos que não existiam quando, há quase exatamente 50 anos, triunfou a nossa Revolução em Cuba.

O tráfico de drogas, o crime organizado, a violência social e o paramilitarismo mal existiam. Nos Estados Unidos ainda não havia surgido o enorme mercado atual de drogas que o capitalismo e a sociedade de consumo criaram nesse país. Para a Revolução, não significou um grande problema combater o tráfico de drogas em Cuba e impedir sua introdução na produção e no consumo das mesmas.

Para o México, a América Central e a América do Sul, estes flagelos significam hoje uma crescente tragédia que está longe de ter sido ultrapassada. Ao intercâmbio desigual, ao protecionismo e ao saque de seus recursos naturais, somaram-se o tráfico de drogas e a violência do crime organizado que o subdesenvolvimento, a pobreza, o desemprego e o gigantesco mercado de drogas dos Estados Unidos criaram nas sociedades latino-americanas. A incapacidade desse país imperial e rico para impedir o tráfico e o consumo de drogas deu lugar em muitas partes da América Latina ao cultivo de plantas, cujos valores como matérias-primas para as drogas ultrapassavam muitas vezes o dos demais produtos agrícolas, criando gravíssimos problemas sociais e políticos.

Os paramilitares da Colômbia constituem hoje a primeira tropa de choque do imperialismo para combater a Revolução Bolivariana.

Precisamente, por sua origem militar, Chávez sabe que a luta contra o narcotráfico é um pretexto vulgar dos Estados Unidos para justificarem um acordo militar que responde inteiramente à conceição estratégica desse país no fim da Guerra Fria, para estender seu domínio do mundo.

As bases aéreas, os meios, os direitos operativos e a impunidade total dada pela Colômbia a militares e civis ianques no seu território, não têm nada a ver com o combate ao cultivo, à produção e ao tráfico de drogas. Este é hoje um problema mundial; estende-se não apenas pelos países da América do Sul, mas também começa a se estender pela África e por outras áreas. No Afeganistão já reina, apesar da presença em massa das tropas ianques.

A droga não deve ser um pretexto para instalar bases, invadir países e levar a violência, a guerra e o saque aos países do Terceiro Mundo. É o pior ambiente para criar virtudes cidadãs e levar educação, saúde e desenvolvimento a outros povos.

Enganam-se os que acreditam que dividindo colombianos e venezuelanos terão sucesso em seus planos contrarrevolucionários. Muitos dos melhores e mais humildes trabalhadores da Venezuela são colombianos e a Revolução lhes deu educação, saúde, emprego, direito à cidadania e outros benefícios para eles e seus entes mais queridos. Todos eles juntos, venezuelanos e colombianos, defenderão a grande Pátria do Libertador da América; juntos lutarão pela liberdade e pela paz.

Os milhares de médicos, educadores e outros cooperadores cubanos que cumprem seus deveres internacionalistas na Venezuela estarão junto a eles!



Fidel Castro Ruz

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

PASSEIO POR HAVANA

PASSEIO POR HAVANA

Frei Betto




Havana, nesta época do ano, é banhada por suave temperatura. O calor é amenizado pelo hálito de frescor que sopra das águas azuladas por trás do Malecón. A umidade reflui, embora a população se mantenha atenta à meteorologia: outubro e novembro são meses de furacões. Ano passado, ceifaram quase 20% do PIB, hoje calculado em US$ 50 bilhões.

Não há sinal de que o desastre se repita este ano. Impossível, contudo, prever as reações vingativas de Gaia, cruelmente estuprada por nossa ambição de lucro e solene desprezo à mãe ambiente.

A visita à Cuba, na penúltima semana de outubro, não tinha agenda de trabalho. Fui a convite do querido amigo José Alberto de Camargo que, para comemorar aniversário, escolheu a cidade reencantada pela literatura de Lezama Lima, Alejo Carpentier e Nicolás Guillén.

A comitiva (comitiva do coração) incluiu os jornalistas Chico Pinheiro e Ricardo Kotscho, este acompanhado de Mara, sua mulher. Alojados no octogenário Hotel Nacional, brindamos o desembarque com o daiquiri de La Floridita, onde Hemingway tomava seus porres. Visitamos a casa de praia em que ele morou e escreveu “O velho e o mar”, bem como o Hotel Ambos Mundos, no qual viveu seis anos e redigiu “Por quem os sinos dobram”.

Foram dias de boa culinária caribenha no El Templete, à beira do porto, e em El Oriente, frequentado por Saramago e García Márquez. Entre mojitos e o aroma perfumado dos charutos Cohiba, cuja fábrica percorremos, mantivemos proveitosas conversas com cidadãos anônimos e autoridades do país, como Ricardo Alarcón, presidente da Assembleia Nacional; Eusébio Leal, historiador da cidade (e responsável pela restauração da área colonial de Havana); Homero Acosta, secretário do Conselho de Estado (no qual se congregam ministros e dirigentes do país); Armando Hart, do Centro de Estudos Martianos; Abel Prieto, ministro da Cultura; e Caridad Diego, responsável pelo Gabinete de Assuntos Religiosos (que cuida da relação entre Estado e denominações confessionais).

Permaneci um dia a mais para encontrar-me com Raúl Castro, atual presidente, com quem almocei no sábado, 24, e Fidel que, na tarde do mesmo dia, me recebeu em sua casa, com direito a jantar.

Cuba se encontra grávida de si mesma. Após 50 anos de Revolução, é hora de analisar erros e impasses. Mira-se o passado para enxergar melhor o futuro. Em 2010, o 9º congresso do Partido Comunista deverá submeter o país à verificação de suas contradições e elaboração de novas estratégias, sobretudo no que concerne à economia e à emulação ética.

Engana-se quem supõe Cuba retrocedendo ao capitalismo. Ainda que se multipliquem aberturas à economia de mercado, devido à globalização e o mundo unipolar hegemonizado pelo neoliberalismo, não interessa à Ilha priorizar a acumulação privada da riqueza em detrimento da maioria da população. A América Central é o espelho no qual Cuba não quer se ver: ali os índices de violência são, hoje, os mais altos do mundo, com 23 assassinatos/ano por cada grupo de 100 mil habitantes. No Brasil, o índice é de 31/100 mil e, em Cuba, 5,8/100 mil. Basta dizer que, no Rio, a polícia matou, em 2007, 1.330 pessoas. No ano anterior, em todo os EUA foram mortas pela polícia 347 pessoas.

Os cubanos são conscientes de as falhas do país não poderem ser todas atribuídas ao criminoso bloqueio imposto, há mais de 40 anos, pela Casa Branca (e, agora, em vias de distenção pela administração Obama).

A manutenção, por longo tempo, de medidas justificadas pela Guerra Fria, começa a ser questionada. É o caso do caráter paternalista do Estado que assegura, a 11 milhões de habitantes, gratuitamente, cesta básica, saúde e educação de qualidade.

Por essa razão, a qualidade de vida em Cuba, onde o analfabetismo está erradicado, figura em 51º lugar, entre 182 países, no Índice de Desenvolvimento Humano 2009, da ONU. O Brasil mereceu a 75ª classificação. Não se cogita alterar o direito universal e gratuito à saúde e à educação. Porém, a redução dos subsídios à alimentação deverá coincidir com o aumento de salários e da produtividade agrícola, de modo a diminuir a importação de 80% dos alimentos consumidos.

Busca-se solução a curto prazo para a duplicidade de moedas: o CUC adquirido pelos turistas (evita o câmbio paralelo e a evasão de divisas) e o peso utilizado pelo cidadão cubano. O turismo, ao lado da exportação de níquel, é das principais fontes de arrecadação de Cuba que, com tamanho 64 vezes inferior ao Brasil, recebe 2,5 milhões de turistas por ano, metade dos que desembarcam em nosso país no mesmo período.

Toda a América Latina se opõe, hoje, ao bloqueio e apoia a reintegração de Cuba nos organismos continentais. A questão política mais relevante nas relações internacionais é a urgente libertação dos cinco cubanos presos nos EUA desde 1998, condenados a penas elevadíssimas, acusados – acreditem! – de evitar atos terroristas. Os cinco lograram abortar 170 atentados planejados contra Cuba dentro da comunidade cubana de Miami.

Fernando Morais, com quem jantamos em Havana, promete lançar, em 2010, livro em que conta a esdrúxula história do processo movido pela Justiça usamericana contra os cinco cubanos.

PS: A quem possa interessar: Fidel goza de muito boa saúde e excelente bom humor.



Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do Poder” (Rocco), entre outros livros.